Um presente inusitado

Um presente inusitado

* Por Eva Alda Medeiros Cavasotto – Professora e Psicopedagoga

  Nos anos oitenta, morávamos num prédio de doze andares com trinta e seis apartamentos.Como tínhamos três filhos pequenos, era regra manter as janelas sempre fechadas uma vez que nosso apartamento ficava no sexto andar.
  O prédio era tranquilo, pois todos os mora-dores trabalhavam e as crianças iam para a escola. No tempo livre, usufruíamos do prazer de passear e levar as crianças no parque próximo da nossa residência, pois naquela época ainda não éramos escravos do medo dos assaltos e da violência que hoje nos aprisiona. Daquele tempo, guardo muitas lembranças de vários acontecimentos alegres, tristes, divertidos, engraça-dos que aconteceram ao longo dos anos que lá moramos, como o que hoje vou contar.

No térreo, num dos apartamentos do lado direito, moravam uma senhora idosa com a filha solteira, ou melhor, “solteirona”, porque naquela época quem não casava até os trinta era chamada de “moça solteirona”.

 Quando eu estava em casa, muitas vezes ouvi o barulho dela ao varrer e lavar a área com a mangueira, enquanto falava bem alto
para que alguém pudesse ouvi-la:
“- Jogam tudo que é porcaria aqui para baixo! Aqui cai de tudo!” Ela ficava enumerando: “bolinha de papel’, papel de bala, pipoca, tampinha, ponta de cigarro e outros… Depois completava com um suspiro lamentoso e um sotaque italiano: “Só não me cai um homem aqui pra baixo!”
Nunca ouvi ninguém se acusar ou se desculpar por ter “distraidamente deixado cair alguma coisa” na área da vizinha, até que um dia…
Era noite de Natal e estávamos voltando da casa do meu irmão, onde fomos nos reunir com a família. Logo que acendemos as luzes do apartamento, ouviu-se um estrondo! Era o barulho de um corpo que caiu em cima de um pequeno telhado, que tinha na varanda do andar térreo! Logo se ouviu uma gritaria no prédio, misturadas ao
barulho dos fogos de artifícios tão comum de ser ouvido nestas noites festivas:
– Olha, dona Filomena, Papai Noel atendeu o seu pedido! É um presente de Natal!
Ouviram-se muitas risadas e assobios das várias janelas do prédio!

   Realmente havia caído um homem do sétimo andar, ou seja, um andar acima do meu apartamento. Enquanto uns, mais preocupados, que não haviam exagerado nos brindes queriam saber se o homem estava morto ou machucado, se a vizinha precisava de ajuda, outros, talvez embalados pelas taças de champanhe, riam e caçoavam da situação sem imaginar algo trágico.
  O apartamento de onde o homem caiu estava em obras, sendo restaurado para um próximo morador. Ele era o pintor de paredes e zelador da obra. Havia vindo do interior, convidado pelo proprietário, pois tratava-se de um homem bom, que precisava de um trabalho e tinha habilidade para exercer o serviço que lhe fora confiado.
  Não ficamos sabendo por que ele estava sozinho, ali, na noite de Natal. Talvez por não poder gastar com passagens, não foi para casa nos tempos das festas natalinas. Soubemos depois que, mesmo sozinho, ele comemorou bebendo alguma coisa e caiu da janela do sétimo andar! A queda foi amortecida, porque ele caiu no telhado da varanda da dona Filomena e teve apenas algumas escoriações.
   Por alguns dias, ainda se ouvia alguém comentar, brincando que o homem tinha caído do céu como presente de Natal para a dona Filomena.
   Passaram-se meses. A obra no sétimo andar terminara e novos moradores vieram morar no prédio. Percebemos que não ouvíamos mais as reclamações de dona Filomena. Então, perguntando por ela para algumas pessoas, ficamos sabendo que ela e a mãe haviam se despedido dos vizinhos mais íntimos e se mudado para uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul.